MINHA AVÓ E O MAR ETERNO
Quando eu cheguei trazendo água do mar e areia,
minha avó ainda estava viva,
mas, em seus olhos, o azul já tinha
aquele nublado da eternidade.
Quando me viu entrar no quarto,
ela desenhou com os lábios
um barquinho de felicidade.
Cheguei ao lado da cama
e estendi a caixa rasa cheia de areia em seu colo
e, sobre a pele áspera arenosa
derramei a garrafinha de água
salgada que trouxera comigo
desde lá de longe, da beirada do mundo,
do mar.
A mão da minha avó tinha
algas azuis como veias
e suas unhas eram duras,
como a casca de um velho caramujo,
e, foi com delicadeza que ela
primeiro apalpou a miniatura de oceano
que eu trouxera ali a seu pedido.
Depois, com cuidado,
a ponta do dedo indicador
escreveu lentamente na areia molhada
um “A” maiúsculo,
seguido de um “m”
e de um “o” e,
por fim, de um “r”
e depois ela suspirou cansada
e me olhou, mais uma vez,
pensando seu jeito de me dizer adeus.
Seus olhos ficaram abertos em mim
e nunca mais se moveram.
No quarto gemeram soluços dos parentes
e alguém disse uma reza murmurada.
Eram tios e tias, minha mãe,
a empregada antiga e duas vizinhas amigas.
A alma de minha avó era pequenina,
redondinha assim: uma esfera perfeita,
que flutuou no ar
sobre o corpinho enrugado ali deitado
e dançou um pouco pelo quarto
antes de sair pelo teto
e desaparecer para os meus olhos
de menino de doze anos
e, claro, para os olhos de todo mundo.
Aquela mão, coberta de veias azuis,
ficou paralisada sobre
a caixa rasa de areia molhada e salgada,
onde se via desenhada, com capricho,
a palavra “Amor”
escrita por aquela mulher
que nunca vira o mar em toda sua vida,
mas, que ouvira muito falar sobre ele.
Ela ouvira dizer,
por seu falecido marido,
que fora por anos e anos marinheiro,
que o mar era imenso!
E que dentro dele,
mergulhados nas profundezas,
havia monstros belíssimos
cheios de patas e chifres
e nadadeiras leves como as asas das borboletas!
E que a luz dentro do mar era líquida
e dançava o balé das marés com a lua!
E mais e mais maravilhas marítimas
como as conchas, as sereias, as gigantes baleias,
os polvos e as estrelas que viviam no mar.
Ouvira mil vezes,
da boca do seu único homem,
as mil estórias dos sete mares.
E se encantara todas às vezes,
com cada palavra dita por ele
para descrever o oceano mágico,
que meu avô marinheiro percorrera mil vezes
antes de aportar
e vir procurá-la e encontrá-la e,
com ela, aqui tão longe do mar azul,
neste mundo de terra vermelha
do interior do Paraná,
permanecer para sempre.
Lembrava-se ela de,
ao estar ouvindo suas estórias,
ver o brilho do sol nos olhos do homem
e logo atrás o brilho da lua refletido
em seus próprios olhos
de mulher apaixonada.
E sonharam juntos com o dia
de entrarem os dois num barco
quando, finalmente, fossem juntos até a praia.
Sonharam os dois,
com esse dia que nunca chegou.
Meu avô morreu antes, do coração.
E ela dizia e repetia sempre,
que ele a estaria esperando lá:
numa praia do céu,
com sua farda branca de marinheiro
e os dois dançariam uma valsa na areia
e depois partiriam num navio sobre as nuvens
e se beijariam felizes.
Amém.
2 comentários:
Que sensível imagem poética da velhice e da morte. Me lembrou minha querida avó, que também flutuou como uma esfera. Estou bem de fronte à foto dela. Obrigada por compartilhar.
Cláudia Gutierrez
Arrepiou até a alma. Não sei se todas as avós se parecem, mas a imagem da sua avó poderia ser a da minha saudosa D. Didoca, mãe de minha mãe, alma redondinha como a avó da Claudia. Sempre bom lembrar destes seres que fizeram nossa infância valer a pena.
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