“ANA, A ANÃ ”
Desde nascença já era anã, a pobre.
Das minúsculas mesmo e cabeçudas - as mãos gorduchas, os dedos-tocos, testa em ovo e o pior: as perninhas bem cambaias.
Os pais medianos normais, mas, uma tia aberratória havia: Tia Laurinha, a nanica.
Tinha um nome bem curtinho a anã: Ana.
Nome posto pela mãe em desaviso, antes mesmo de saber ou desconfiar que a filha fosse ser assim: miúda para sempre.
Vivia a pobre, depois de entender os fatos, lá pelos doze anos ainda, já amuada e tristezinha.
Na escola, os colegas debochavam, pra seu maior sofrer ainda, diziam : ... “coisa pouca! ... meia sombra! ... bibelô!”... essas coisas.
Aninha foi levada a doutores com diplomas; a santas-benzedeiras; a macumbas fervorosas; a capelas milagrosas de milagres consagrados e : nanja! O nanismo era eterno para ela! Não crescia nem um tico a pequena pequerrucha.
Veio o tempo adolescente e trouxe, lá pras amigas, os peitinhos empinados? Sim.
Os quadris mais requebrantes, os batons, os brincos e carmins?
Sim.
E namorados beijoquentos?
Sim!
Mas, pra ela, o tempo trouxe um andar mais balançado, umas banhas mais gorduchas e nenhum olhar que não de curiosa chacotice.
Nenhum namorado teve. Nenhumzinho só que fosse!
Aos quinze, as amigas dançaram a valsa com os pais. Ela não : dispensou.
Ia se achar risível no salão a pixotinha, tendo o pai em corcundas forçadas rodopiando sob os olhares e risos do baile. Não quis, por mais que o pai dissesse que ninguém se atreveria a rir. Não quis.
Ela, nas noites do seu quarto, se sonhava:
toda alta, toda linda, numa praia ensolarada e sem as roupas de criança.
Mas, os dias acordavam e ela via o tronco grosso, mais e mais a cabeçorra, menos pernas, menos braços e os seios mais boludos.
Tinha ódio: ojeriza.
Um dia, já contava mais de trinta anos, morreu a mãe e, aos trinta e três morreu o pai.
Ficou sozinha a anã no casarão vazio.
Viu no espelho que já eram rugas mais profundas as que tinha.
Viu que eram branquinhos os seus tufos de cabelos laterais.
Viu que o tempo não trazia senão mais marcas e mais nada para ela.
Chorou então umas muitas lagrimazinhas miúdas e encheu mais um pouco o aquário olhando os peixes nadarem entre as bolhas de ar e as algas e depois saiu para a rua.
Andou a anã até a ponte enorme que liga a cidade ao continente e,
com seus passinhos bem tortos, chegou ao meio da enorme estrutura de aço, para lá de cima olhar o mar lá embaixo.
Era cinza - de um cinza escuro e de espumas suicidas - o mar que se apresentava. Era um mar convidador e aberto em enormidades salgadas para o mergulho.
Ela ficou ali, com o olhar navegando sobre as ondas dançarinas com suas saias rodadas de rendas brancas de espuma.
Ele vinha vindo sem nada saber de nada da vida da anã que estava ali por um fim. Veio vindo nos seus passos, mãos no bolso e assobios. Viu a mulher-tão-pequena com aquele triste olhar tão grande sobre o mar e foi passando por ela, na reta de seu caminho normal.
Quando ele estava já há dois passos passados, ela virou-se e disse com sua voz de criança velha :
- Ei, você!...
Ele olhou e ela disse assim, bem nervosa, para ele:- Você me beija, se eu te pedir? ... Me beija?
E ele sem respirar, bem parado :- Eu? ... Eu beijo.
Pois assim que ele disse isso, a pequena fechou os olhos efez assim um biquinho com os lábios.
E então ele abaixou-se e, antes olhou para os lados vendo se vinha alguém, depois beijou bem de leve a boquinha de Ana, a anã.
Ela manteve por um tempo os olhos fechados e saboreou os mistérios do primeiro beijo bocal da sua vida. Chegou até a suspirar baixinho das delícias que sentia.
Ele encabulou em vergonhas de que algum conhecido o visse e,
já ia indo, quando ela outra vez :
- Mais um se eu te pedisse?
- Não. ... me desculpe! ... (E foi indo.)- O último, eu juro! Te dou meu dinheiro! (Ele parou.)
Ana subiu no alambrado da ponte e pediu :
- Me beija antes que eu pule?
Ele não sabia que palavras usar e disse :- Eu beijo! ... Mas, desça! ...
Ela não desceu e fez biquinho de novo, agora, de cima da murada, na altura certa dos lábios dele.Ele beijou a anã e sentiu a língua dela lamber sua boca por dentro
com uma gula gigantesca.
O homem teve medo e nojo de estar ali beijando uma anã desconhecida e sentindo suas íntimas salivas. Afastou a boca depressa e deu as costas pra ela : - Adeus! ...
E foi indo ponte afora passando a manga da camisa nos lábios
e sem nem se importar com mais nada.
Nem com o dinheiro, nem nada.
Ana nem abriu os olhos: pulou.
Foram dezenas de metros abaixo.
Dezenas.
E, em pleno vôo, ela sentiu a crescente metamorfose,
como em mágica, em fantasia final: era grande o seu minúsculo corpo agora, solto no espaço vazio! Era enorme! Cortava os ventos em reta descida.
Crescia a grande emoção e agora ela era linda, com os cabelos voando sem freios, sem peso, com os braços abertos e mais nada que não fosse só o mar chegando para o abraço...
Lá da ponte ele viu o pequeno corpo descendo,
depois viu a boca da água engolindo a mulherzinha e mais nada.
A noite já vinha chegando e em casa a mulher e os filhos. Foi-se embora o homem temendo a complicação.
Passou antes no bar de sempre pra beber, e depois, foi pra casa dormir.
No outro dia na praia encontraram
- dizem, não sei se é verdade -
uma imagem de santa pequena:
de Sant’Ana, há quem afirme.
E mais - dizem - que a tal santa pequena,
apesar da lágrima salgada
que verte dos santos olhos vez por ano,
mantém sempre os olhos fechados
e faz com os lábios assim:
um biquinho, num quase-sorriso miúdo.
Enéas Lour / 2000
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