ENÉAS LOUR É ATOR, DRAMATURGO, CENÓGRAFO E DIRETOR TEATRAL

3 de mar. de 2010

“AS BORBOLETAS CINZENTAS”



 


A primeira vez que eu as vi foi em um dia bonito, 
em maio de 2028, numa manhã azul de geadas
voando espalhafatosas, como sempre,
sobre o lago, ao lado do abrigo.
Este primeiro bando não era de muitas, a princípio. 
Ainda eram, talvez, apenas duas ou três centenas
de borboletas que se entrelaçavam pelo ar,
sobre a água cinzenta. 
Eram azuis, na grande maioria.
Norberto Kaminski estava comigo, ao meu lado,
em sua cadeira de rodas. Mas, ele não as viu.
Continuou com seu olhar duro, em linha reta,
como se não visse mais o mundo. E não via.

Kaminski havia se cansado, como tantos outros, de tudo.
Ele era mais velho que eu uns cinco ou seis anos, não sei.
Acho que ele já tinha 80 anos mas,
parecia muito mais velho
por causa da “calvície negra”, como era chamada
aquela doença estranha, que se espalhara pelo mundo
depois da hecatombe na Ásia, em 2015.
 
Lembro bem que uma delas,
uma branca com rajadas azuis claras
pousou sobre a cabeça dele e ficou ali:
abrindo e fechando as asas sobre a mancha negra e lisa
na cabeça do Kaminski. E ele: nada!
Nem bola para a borboleta, com o olhar pregado no nada.
 
O Kaminski morreu pouco tempo depois.
Uns três ou quatro meses.
Antes delas empestarem o mundo.
Ele não viu, como nós, as bilhões e bilhões
de borboletas cobrirem a Terra
com suas asas cinzas e com seu pó maldito.
Sorte dele!

Uns dizem, ainda hoje, que elas proliferaram
por causa da explosão nuclear que destruiu o Irã
no tão comentado “acidente” na usina
que ficava dentro de uma montanha.
Outros dizem que não,
que as borboletas negras são o produto 
de uma praga divina,
como os gafanhotos da Bíblia!
Para mim tenho que são apenas trilhões e trilhões 
de insetos que dominaram nosso mundo podre.
É isto o que são. Só isso.

Existiam mais de 200 mil espécies de borboletas
antes do início da praga.
Hoje não existe mais espécie alguma afora as “cinzas”.
Antes,
as borboletas fêmeas eram fecundadas pelos machos
após deixarem a crisálida e então colocavam seus ovos.
Em alguns dias os ovos eclodiam e saíam lagartas
que comiam a casca dos ovos e a partir daí
começavam a comer folhas
e não faziam outra coisa senão comer.
Essas eram as antigas borboletas.
As “cinzas” não são assim.
 Elas se reproduzem muito rapidamente
e a sua fase larvar é rapidíssima.
Questão de minutos!
Por isso são trilhões.
E devoraram todo o verde que havia sobre a terra.
E deixaram o mundo assim, como elas: cinzento.

Aqui no abrigo, como em outros, segundo eu sei,
ainda temos as plantas artificiais, para nos enganar.

Sim, são verdes.
Parecem folhas e flores mas,
não têm cheiro, por mais que lhes coloquem
essências artificiais aromáticas.
Não cheiram como cheiravam as flores de antes,
as naturais,
com seu suor de terra, de chuva, de orvalho, não!
São plantas estúpidas, como o mundo!
Estúpidas como essa nossa comida reciclada!
Essa papa feita de nada,
com gosto de nada e sem açúcar e nem sal!

Vivemos nós aqui trancafiados nesses asilos
e elas lá fora, livres.
Bilhões e bilhões de bandos cobrindo o mundo
como nuvens cinzentas.
As donas da Terra.
Malditas!

Mataram milhões de animais também.
Quase todos.
Salvaram-se os marinhos, mas, mesmo assim,
o pó que cai de suas asas infestou os oceanos
e formou uma lama escura que impede a entrada de luz
e, em breve, aniquilará também a vida que resta ali,
sob as águas.

Somos apenas um bilhão de seres humanos no planeta
e elas são 1000 ou 2000 vezes este número, talvez mais.
Nossas cidades sob as cúpulas estão sendo enterradas a cada dia,
mais e mais.
O sol quase desapareceu
e o ar reciclado ou filtrado para dentro
traz esse cheiro ardido de inseticida.

Elas venceram.

Não nos reproduzimos mais naturalmente.
Apenas os “sintéticos” têm alguma perspectiva de vida.
Somente eles, a “elite humana” produzida em laboratórios
tem esta perspectiva.

Nós?
Os humanos reais?
Não temos a menor chance! ...
Esperaremos apenas terminar nosso tempo
vegetando em nossos asilos
e depois que o último de nós falecer, não sei o que será.

Dizem que os sintéticos estão colonizando Marte
e que é para lá que irão assim que terminem a climatização.
Há anos estão enviando “mudas”
de algas marinhas terrestres
para os mares de lá que foram produzidos
com o derretimento das calotas polares marcianas.
Essas algas irão produzir oxigênio para criar 
uma atmosfera tolerável à vida dos novos terráqueos: 
os sintéticos com DNA modificado.

Quem pode saber que mundo será este?...

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Enéas Lour
Fev / 2010



Um comentário:

Simone Nercolini disse...

Puxa vida, Lour...