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KARATE KID CONTRA UM SIMPLES BÊBADO COMUM
Entrei no bar
Entrei no bar
– mesas de fórmica branca –
eram onze e pouco.
Pedi um bolinho de carne e uma meia cerveja.
A televisão gritava uma musiquinha estúpida
no alto do canto azulejado.
O japonês
– sorriso –
abriu o forninho de vidro sobre o balcão
e caçou uma bolota de carne moída
com os dois pauzinhos,
ágeis e melados de graxa de pastel,
e a colocou dentro de um prato de alumínio amassadíssimo
que empurrou para mim enquanto mergulhava
no balcão frigorífico atrás da meia cerveja.
Voltou com a garrafinha
e com um estouro arrancou a tampinha que
– mágica –
deu três giros mortais no ar
e caiu dentro de uma caixa de papelão
cheia de tampinhas mortas.
Tudo muito rápido.
Pegou um copo e
- malabarista do Circo de Tóquio-
fez três giros também no ar
antes de vir parar em minha frente, sobre o balcão.
O japonês riu e disse lá alguma coisa em nipo-português que
– juro –
não entendi.
Mas, ele riu assim mesmo.
Enchi o copo e mordi a bolota de carne moída olhando a TV.
- Tem uma pimentinha?
Enchi o copo e mordi a bolota de carne moída olhando a TV.
- Tem uma pimentinha?
(Implorei ao japonês querendo disfarçar
o requintado sabor da iguaria gordurosa)
- Pimentinha?
- Pimentinha?
Disse balançando a cabeça - que sim – o National Kid.
- É!
- Só tem molho!
- É!
- Só tem molho!
E apontou o pote de plástico vermelho-grudento
logo ali ao lado, no balcão.
- Ah, ta! ... Tudo bem, obrigado! ...
- Ah, ta! ... Tudo bem, obrigado! ...
Eu disse enchendo a boca de cerveja.
Foi aí que ele entrou.
Um desses homens-lixo que vagam pelas cidades.
Um desses homens-lixo que vagam pelas cidades.
Desses bem podres.
Cabelos compridos grudados com terra;
unhas pretas; joelhos de fora nos rasgos da calça;
olhos inchados; alguns dentes;
um pé com chinelo havaiana e o outro com ferida grandona.
O japonês fez cara de kamikaze e já foi enxotando o bicho.
O imundo parou no meio das mesinhas brancas
O japonês fez cara de kamikaze e já foi enxotando o bicho.
O imundo parou no meio das mesinhas brancas
e olhou para todo mundo no boteco.
Eu, dois PMS lá no fundo e mais um velho que já ia saindo.
Depois enfiou a mão dentro da calça
e massageou as suas partes
dizendo assim, com seu sotaque alcoolizado:
“Deus é justo, mas, não é apertado!”
E olhou pra mim, que quase ria da frase,
me mostrando uma cara que dizia assim:
“Ta rindo do quê?”
Ele aproximou-se ignorando o nipônico
Ele aproximou-se ignorando o nipônico
que urrava sons incompreensíveis para qualquer um
e apontava a porta da rua lá de trás do balcão.
Aí o imundo-filósofo-bêbado repetiu,
com seu bafo bem dentro do meu nariz,
a sua frase triunfal :
“Deus é justo, mas, não é apertado!”
E riu.
E eu disse
E eu disse
– sem saber o que dizer –
- Ta certo!
E ri timidamente.
O japa veio feito um aviãozinho
O japa veio feito um aviãozinho
riscando o céu em direção ao destróier preto e sujo,
mas, quando estava quase batendo nele,
o bicho-podre-obsceno
tirou do saco plástico um maço de notas miúdas amassadas
e umas moedas que botou sobre o balcão dizendo:
- “Põe pra mim duas pingas e me dá um quibe também! ...”
O japonês viu as notas e parou
O japonês viu as notas e parou
e resmungou e serviu o pedido direitinho
depois de embolsar a grana miúda
no bolso do avental meio encardido.
O monstro-podre e vesgo comeu o quibe de uma vez
O monstro-podre e vesgo comeu o quibe de uma vez
e depois virou a primeira pinga.
A segunda degustaria mais devagar,
com o dedinho mínimo levantado
e dando só pequenos goles olhando tudo devagar.
Eu ali do lado bebi minha cerveja
Eu ali do lado bebi minha cerveja
e acendi um cigarro.
(Não ofereci para evitar papo.)
- O senhor me dá um cigarro, amigo?
- O senhor me dá um cigarro, amigo?
Disse ele em seguida.
Dei.
Dei.
Mas, acendi sem olhar nos olhos dele para evitar papo.
- Muito agradecido, amigo!
- Muito agradecido, amigo!
E tragou fundo.
Os dois soldados PMs lá na mesa do fundo,
Os dois soldados PMs lá na mesa do fundo,
já coberta de garrafas de cerveja,
riram do pobre-diabo-maloqueiro-poeta
que julgou enfim ter conquistado platéia
e, por isso, resolveu repetir a própria poesia teológica e disse:
- “Deus é justo, mas, não é apertado!”
Riso de todos,
Riso de todos,
menos do Karatê Kid enferruscado
que lavava copos na pia e balançava a cabeça negativamente.
O show-man podre se entusiasmou
e gritou para os milicos :
-“Deus é justo, mas, não é apertado!”
Eles riram.
Ele dançou uns passos bêbados
Eles riram.
Ele dançou uns passos bêbados
não meio do bar
com os dois dedos indicadores indo e vindo
para cima e para baixo:
- “Deus é justo, mas, não é apertado!”
Várias vezes,
Várias vezes,
até que foi perdendo a graça
e nem eu nem os milicos olhávamos mais para o
chato-podre-preto dançarino.
O Japonês grudou-se no celular
e falava coisas incríveis em sua língua natal.
Terminei a cervejinha
e o papagaio-bêbado-craquento
continuava se balançando no puleiro
repetindo a sua marchinha de carnaval:
“Deus é justo, mas, não é apertado!”
“Deus é justo, mas, não é apertado!”
“Deus é justo, mas, não é apertado!”
...
Até que cansou.
Terminava a segunda pinga
e já revirava o pacote plástico
atrás de uma moedinha para adquirir
mais um martelinho e depois,
quem sabe, seguir viagem pela rua.
Fui ao banheiro.
Um quartinho minúsculo
lá no fundo do bar
onde não havia mais ar nenhum
e o cheiro de mijo ardia nos olhos.
Entrei segurando o pouco ar que tinha em meus pulmões
e mijei a cervejinha toda num jato espumante e rápido.
Saí louco para respirar de novo
e vi o japonês lá na porta do bar,
com as mãos na cintura
olhando lá pra rua.
Lá fora os dois miliquinhos PMs
davam porrada pra cacetete em alguém caído na calçada.
Procurei pelo bar com os olhos.
Era nele que batiam.
Senti um frio na barriga,
corri até a porta e parei com as mãos na cintura.
Era mesmo nele a tunda:
coturnos na barriga; nas costelas, no saco.
Pauladas na cabeça, na boca, nos braços
e palavrões no pé-de-ouvido.
Os dois PMs desciam o cacete
Os dois PMs desciam o cacete
no coitado-podre-preto-velho
que já era só uma bolota de carne moída
encolhida no meio-fio, ao lado dos sacos de lixo,
cascas de laranja, guardanapos
e latinhas de coca-cola e guaraná.
E eu olhando.
Aí os dois PMs juntaram
Aí os dois PMs juntaram
o chorão-pau-dágua do chão
e o jogaram lá pra dentro da viatura.
Lá de dentro o olhar dele,
vazando sangue,
encontrou o meu.
E ele riu pra mim.
Riu com aquela boca-mole
vermelha desdentada de pobre-animal-poético-urbano.
Riu como se ainda repetisse:
- “Deus é justo, mas, não é apertado!”
O bolinho me voltou até a boca
quando os PMs fecharam o camburão
e ligaram a sirene e saíram cantando pneu pela rua
levando o pacote vermelho e preto.
O japonês também riu.
Riu e disse assim com seu sotaque amarelo:
Riu e disse assim com seu sotaque amarelo:
- Essa gente tem que tratar assim, senão já viu, né?
E entrou no seu boteco fedido pra fritar mais um pastel.
Enéas Lour
Fev. 1988
Fev. 1988
(Ilustração : Enéas Lour)
Um comentário:
Putz, que delícia de texto, Enéas! Salvou o meu sábado, gracias!
Abração!!
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